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A intensa entrega física e emocional para os personagens é padrão na carreira de José de Abreu. E basta olhar o currículo recente do
intérprete do asqueroso Nilo, de “Avenida Brasil”, para perceber. Em “Caminho das Índias”, por exemplo, para viver o sacerdote Pandit, ele topou raspar a cabeça e todos os outros pelos aparentes do corpo. Agora, faz exatamente o contrário: desde julho de 2011 que não corta a barba e os cabelos. Situação que, confessa, já não o agrada tanto assim. “Gosto de mudar pelos personagens. Mas olha, dessa vez está complicado. Atrapalha para comer, não é muito higiênico”, argumenta.

Na trama de João Emanuel Carneiro, José vive um homem rude conhecido pelas maldades praticadas contra crianças que vivem em um lixão. Mesmo assim, conta que não precisou de laboratório para conhecer o ambiente em que mais gravou cenas no folhetim. Principalmente na primeira fase, quando a vilã Carminha e seu amante Max, de Adriana Esteves e Marcelo Novaes, abandonaram a pequena Rita, vivida por Mel Maia, nas mãos do carrasco. O trauma foi tanto que a menina, quando adulta e vivida por Débora Falabella, decide se vingar do casal. “Tenho um amigo que tem um aterro sanitário em Paulínia e comecei a me interessar pelo assunto há três anos. Fui do mais bonito ao mais feio para ver como era”, explica.

O Nilo era um personagem que, pelo envolvimento com crianças e os maus tratos no lixão, poderia ser taxado como pedófilo por alguns. Isso preocupou você?
Já na primeira fala da novela, ele dizia “gosta de caramelo, fia?”. Essa foi a primeira frase que eu disse como o personagem. E isso, de cara, para algumas pessoas na própria gravação, se assemelhou demais com o papo de oferecer a balinha de pedófilos que a gente vê na tevê. Mas olha, acho que eu, como ator, me preocupei mais do que a própria direção. É óbvio que havia um cuidado geral com o lixão. “Avenida Brasil” vem quebrando certos paradigmas na Globo. Hoje falamos mais palavrões e não se pode esquecer que colocamos um lixão na tevê em uma hora em que as pessoas estão jantando. Uma coisa que a emissora nunca topou e o João Emanuel Carneiro conseguiu. Tanto que ele mesmo diz que o pessoal se assustou quando pegou a sinopse.
Mas sua preocupação chegou ao ponto de atenuar, de alguma forma, a agressividade do personagem?
Não teria como. É a agressão às crianças do Nilo que faz o lixo ficar mais tenebroso. É esse personagem quem mais justifica a vingança da Nina e a maldade da Carminha e do Max. Então, tinha de ser barra pesada mesmo, não dava para aliviar demais. Se acontecesse, poderia reduzir a própria carga da protagonista. Nesse caso, até das duas, da mocinha e da vilã. Afinal, a Nina poderia ter caído nas mãos da Lucinda, mas não foi o caso.
A novela estreou há quase quatro meses, mas você vem trabalhando em cima desse personagem há mais tempo. Como tem lidado com esse visual, com cabelos e barba longos?
Está difícil. Dormir é complicado e o cabelo já chegou naquele comprimento em que se mistura com a barba. Então, cria-se uma “parede” de pelos entre o travesseiro e eu. E não há qualquer indicação de que vai mudar. Até porque estamos gravando capítulos muito alternados, seria difícil achar uma continuidade. Como passei alguns capítulos fora do ar, poderiam ter mudado. Se não o fizeram, não deve acontecer. Tem um ano que comecei com isso, porque deixei crescer tudo a partir de julho do ano passado. Eu estava na Jordânia quando o Ricardo Waddington me procurou para falar da novela e avisar que eu faria o papel. Topei e não mexi mais. Quando eu fecho um trabalho, não faço mais nada na minha cara. Deixo tudo disponível para terem mais material para criar em cima. Tem valido a pena.
Essa repercussão positiva em relação ao seu trabalho faz deste personagem um dos mais importantes de sua carreira na tevê?
São 45 anos como ator, mas para mim o personagem atual é sempre o melhor. É o que estou fazendo, o que me dá possibilidades de escapar da vida real e mergulhar na fantasia. E esse é um papel bem teatral, muito gostoso de interpretar. Tem aquela risadinha que não é minha. É distante demais do que sou, eu jamais maltrataria uma criança. Elas me adoram!
Como tem sido a reação do público infantil?
As crianças estão sempre pedindo para tirar foto comigo e mexer na minha barba. Fui ao lançamento do canal infantil Gloob, de tevê por assinatura, e fizeram fila para fotografias. Acho que esse público gosta dos vilões e já sabe diferenciar essas coisas. Talvez em função dos próprios desenhos animados.
Mas o Nilo é bem mais asqueroso e menos humanizado que a maior parte dos vilões de animações...
É, mas a risadinha dele dá uma quebrada. E ele tem uma ironia, um jeito de quem não tem nada a perder que é bacana. Caiu no inconsciente coletivo com aquela história do homem do saco e suas variantes. Desde bicho papão, velho mendigo, homem da carrocinha, enfim o cara que vai levar as criancinhas. E ele ainda falava “quero ver o saco cheio”. O jeito como ele se vestia e a barba criaram uma figura meio de história em quadrinhos, de literatura. Aquele visual só é normal no lixão, porque são pessoas muito coloridas. Eles vão pegando uma roupa e colocando por cima da outra, já que, quando aquelas coisas batem na pele, é batata que vai dar coceira e outros problemas.
O Nilo passou por uma mudança de cenário e de figurino. De que forma isso influenciou seu trabalho?
Tive de me cuidar, confesso que foi difícil permanecer no personagem. O figurino, principalmente, afeta demais. Talvez em uma cena ou outra eu possa até ter perdido o tom porque foi mesmo um período de transição preocupante. Mas acho que não, me controlei bem. Pensei nisso porque o primeiro figurino era muito determinante e me ajudava demais. O segundo é mais normal.
Você chegou a visitar algum lixão com a equipe de “Avenida Brasil”?
Nem fui porque tinha ido a outro, no interior de São Paulo. Tenho um amigo que brinco que é lixeiro, ele já foi até citado em “Passione”, novela do Sílvio de Abreu, pelo personagem do Francisco Cuoco. Esse amigo tem um aterro sanitário – que é o nome moderno que dão hoje – e fui lá ver como era. Depois, numa dessas coincidências da vida, fiquei amigo do pessoal que implantou o aterro dele. São engenheiros italianos, passamos o final de semana em Angra dos Reis e até me convidaram para ir à Europa. Isso há uns três anos, quando nem imaginava que fosse fazer essa novela. Passei 15 dias na Itália para conhecer o que eles estavam fazendo lá, já que se tratava de uma curiosidade ecológica minha. Conheci uma fábrica que funciona em uma cidadezinha praiana onde constroem iates. E eles conseguem 50% de energia elétrica da fábrica queimando resíduos de lixo. A Suíça, por exemplo, importa lixo da Alemanha para fabricar energia elétrica. Fui me interessando pelo assunto. O Brasil é um dos maiores produtores de lixo. Transformar tudo isso em energia seria um barato.
Você vem de uma geração politizada, onde muitos – incluindo você – foram presos no período da ditadura. Hoje, sente falta de artistas mais ligados às questões políticas?
Ah, essa nova geração não tem o mesmo embasamento político. Mas também porque a política não fez parte da vida deles. Muitos nem fizeram teatro, que na minha época era um centro de resistência política. Para fazermos teatro, precisávamos ler muito. Alguns artistas caem pelo movimento ecológico ou gay, mas não partidário. Geralmente é uma política a favor de minorias. Mas isso já era de se esperar.
Por quê?
A verdade é que a ditadura mudou a educação brasileira. Hoje, a universidade não é mais um centro de discussões políticas. A gente tinha muita preocupação em estudar Filosofia e Sociologia, mas hoje não se estuda mais isso. São disciplinas que ficaram restritas aos pesquisadores e professores. Mesmo tratando-se de assuntos que ajudam a gente a ser mais feliz, que é o objetivo do ser humano, da sociedade e do governo. E o conceito de felicidade mudou, o ter passou a ser mais importante que o ser. Se a pessoa for feliz tendo, por mim tudo bem. Mas tem gente que não consegue.
A própria televisão vem tratando menos de assuntos políticos. São poucos os autores, como Benedito Ruy Barbosa, Marcílio Moraes e Lauro César Muniz, que ainda apostam em histórias com essas discussões. Isso o incomoda?
Mas tem uma coisa que acontece aqui com as novelas. Quer ver uma coisa? Tramas das nove fora do Brasil não têm o mesmo peso daqui. Elas têm valor artístico. No Brasil, há essa coisa da irradiação da novela. Como é uma concessão de governo, é como se as emissoras tivessem a obrigação de produzir algo específico. Mas definir conteúdo é censura.

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